Na matéria de hoje vamos falar um pouco sobre o polêmico prelúdio feito por Ridley Scott para a série de horror e ficção cientifica Alien, chamado Prometheus (2012). Para falar bem a verdade, alguns até pensam que nem prelúdio é! O que diabos é esse filme afinal?!
AVISO: O conteúdo dessa matéria é direcionado para quem já assistiu ao filme e deseja uma análise mais aprofundada das suas fontes simbólicas. Há várias revelações de enredo! Já se você gosta de uma boa discussão do mundo simbólico, sinta-se convidado a comentar e discutir suas impressões! Todo pensador ou pensadora é bem-vindo ou bem-vinda!
Podemos começar explorando, antes de mais nada, a polêmica do famigerado prelúdio. O próprio diretor Ridley Scott já havia anunciado que o filme não é um prelúdio ao filme de 1979¹, mas que ele carregava o DNA de Alien (Ibid.). Isso quer dizer que o gênero dele segue a mesma receita daquela grande obra de Scott, não só isso, mas a mesma linha de trama: como o filme de 79, também lida com a dificuldade da mulher obter espaço em um mundo tão dominado pelo gênero masculino. O filme de 2012 faz várias menções diretas ao Alien original, com direito a homenagens magníficas aos atores desse. Ao mesmo tempo, faz questão de modificar alguns dados (como os nomes: da lua LV 223 para o planetóide LV 426) para que a ligação não seja total. O fato é que os acontecimentos em Prometheus se dão um ano depois do nascimento da Tenente Ripley, protagonista de Alien, em 2094.
Fazendo uma breve retomada de Alien – O Oitavo Passageiro (1979) lembremos de Sigourney Weaver interpretando a famosa e heroína Tenente Ellen Ripley fazendo o possível para sobreviver a um encontro com um xenomorfo totalmente desconhecido. As características do monstro são ímpares: para onde você olhar há reentrâncias vaginais e protuberâncias fálicas, sendo também dotado de uma sensualidade felina quase que inebriante se não fosse pela sua ferocidade fatal. Nascido de um estupro, se torna símbolo implacável de nascimento e destruição. Ao longo de várias metáforas que nos levam ao embate “Feminino vs. Masculino”, Ripley sobrevive em um mundo onde suas intuições não são ouvidas e onde não tem autoridade sobre sua tripulação. Ainda assim, ela assume seu papel e sua posição como uma mulher e sobrevivente. Lembrando que o filme foi lançado em 1979, logo após a onda feminista da década de 60 e da ascensão da mulher a cargos de liderança e de maior hierarquia.
Voltando para Prometheus, o código genético do filme realmente continua o mesmo. Buscando sua origem nos ditos Engenheiros, a humanidade dá de cara com um estereótipo devassado da masculinidade viril e do ultramacho – perfeitos, musculosos, altivos, extremamente inteligentes e superiores – sendo a razão para a nossa existência e quase dignos de reverência, como podemos observar em algumas cenas. Estoico, ritualista e silencioso, o engenheiro sacrifica a sua vida em uma espécie de solve et coagula alquímica, ingerindo um viscoso líquido negro que dissolve seu código genético para então coagular novamente, dando origem a um novo começo.
A tripulação da Prometheus, a nave que abandona a sua Mãe Terra em busca da identidade do Pai da humanidade, é composta por várias figuras extremamente interessantes. Falando do feminino, podemos começar pelas grandes exemplares. Uma é capitã, fria como uma rocha e precisa como uma navalha, praticamente um homem que somente cai na cantada do piloto (homem, negro, musculoso…) quando questionada se ela na verdade não seria uma robô. Chama-se Meredick Vickers. Já a outra é uma fiel seguidora da estrutura simbólica passada por seu Pai, feminina, obediente, sensível e inteligente, ela é quase uma mulher completa (aos moldes machistas) – se não fosse a ironia da sua incapacidade de gerar filhos – atendendo pelo nome de Elizabeth Shaw.
Já no corner masculino temos desde um arrogante humano que se recusa a morrer (Peter Weyland); um calculista ainda extremamente filosófico androide que pergunta se uma resposta realmente vale a pena ser perguntada, mesmo que não gostemos da resposta (David); até um arquétipo desbravador que ao perceber que há uma ruína alienígena na lua onde aterrizam, retira seu capacete na atmosfera e ri na face da Morte (Charlie Holloway). Há vários outros personagens, claro, e cada um talvez mereça sua própria análise. Mas hoje falaremos desses cinco (ou talvez sete, contando com o engenheiro e sua criação).
O que gostaria de sobrevoar, no tocante dos personagens, são os estereótipos que eles representam. Meredith é a mulher que decide masculinizar-se, trazer para si e carregar um peso da expectativa masculina sobre a mulher independente (talvez não seja a toa a forma que dá seu trágico fim). Já Elizabeth é a mulher nos moldes mais femininos, mais dependente e sensível ainda que com uma inteligência e uma rebeldia potenciais que a fazem a heroína, quando desperta e fecunda. A ironia da sua infertilidade é de importância central para o desenvolvimento da personagem. Peter é o homem arrogante, que não sabe o fim da sua ousadia e do seu desejo, aquele tipo de homem que molda as circunstâncias a fim de atingir seus objetivos, não importando o que aconteça. Mesmo que um androide, David traz para nós o homem solitário e reflexivo, perdido em devaneios e na racionalidade da sua cabeça que poderia muito bem funcionar sem o corpo. Por fim temos Charlie, o desbravador, aquele que nada teme e que frustra-se ao ver que sua busca tem um fim indesejado, uma pergunta que talvez não tenha uma resposta ideal. Todos eles são maneiras e exemplos, quase arquétipos, de como sobreviver no mundo que temos, de como agir com nossas necessidades e principalmente como lidar com nossas frustrações: toda a tripulação, com a exceção de David que herda o trauma pelo seu criador, é órfã de Pai e busca nos confins do universo a identidade da paternidade por tanto tempo negada.
Bem, de analogias fálicas e vaginais o filme está cheio. Pra onde você olhar a arte vai remeter a um ou a outro e, em alguns casos especiais, a ambos. Como esquecer do primeiro estágio do xenomorfo que mostra-se como um dócil e inofensivo organismo fálico, para logo em seguida revelar sua hostilidade ao mesmo tempo que desvela sua vulva ameaçadora?
Mas assim como em Alien, a mensagem é mais do que Feminino vs. Masculino ou de Falos e Vaginas sendo descaradamente mostrados ao espectador. Também há a figura da maternidade e do nascimento, em primeira instância, e a destruição e a morte, em segunda. O líquido negro e viscoso que é fecundo e a tudo fecunda é muitas vezes relacionado a uma arma biológica de destruição em massa, ao mesmo tempo em que ao entrar no organismo da Dra. Shaw, a torna fértil a ponto de ficar imediatamente grávida. Essa matéria orgânica alquímica que digere e dissolve, destruindo o que toca, também é responsável pela criação e pela coagulação da nova vida. Ela, em conjunto com a matéria masculina intermediada pelo Dr. Holloway, permite o despertar completo da nossa heroína. A partir de então, de uma postura passiva frente aos mistérios do universo (e do seu próprio sexo, lembrando que ela não sabia o que era conceber uma vida) ela torna-se ativa, a ponto de ser figura central numa das mais belas e horrendas cenas do SCI-FI moderno quando dá a luz ao segundo estágio do xenomorfo. Não aceitando o destino que lhe foi imposto, nem a resposta da paternidade que lhe foi dada, a Dra. Shaw, aos moldes de Ripley (que era mãe), se faz vanguarda para um desfecho diferente daquele proposto pelos seus arquitetos homens, tornando-se protagonista de sua própria história sem precisar perder sua feminilidade.
Como a grande maioria dos filmes, poderíamos ficar horas conversando sobre as interpretações do mito da serpente Uroboros simbolizada pelo líquido negro (e pelas aparências serpentinas do xenomorfo) ou sobre o relevo da câmara central da nave dos arquitetos, que tanto parece uma abóboda de alguma catedral italiana. Falaríamos sobre implicações evolucionistas dos três (e possíveis outros até chegar em Alien) estágios evolutivos das criaturas, que os diretores de arte fizeram questão que ao primeiro contato com o humano tivessem aparência de golfinhos e lulas (não sem passar uma mensagem). Poderíamos também falar sobre como David (aos moldes de Ash, em Alien) representa a humanidade a mercê do seu intelecto e racionalidade, separado permanentemente de um senso sensível de ética, moral ou remorso, e as implicações dessa decisão. Mas tudo isso seria muito pesado para algo que talvez possa ser mais simples:
Já que ao tom de Jean Paul Sartre, Ridley Scott nos passa uma última e singela mensagem que independe de sexo: não importa o que fizeram de você (ou quem te fez), mas sim o que você faz com o que fizeram de você.
Referência:
1 – BBC News Online (http://www.bbc.co.uk/news/entertainment-arts-18298709)